quarta-feira, 5 de outubro de 2016


         Sei muito pouco de tudo. De sociologia, confesso, não sei mesmo nada. Contudo, quando saio sozinha pela cidade (a que me viu nascer ou outra qualquer) e observo as pessoas com mais atenção, dou por mim a questionar-me acerca de alguns comportamentos. Foi o que aconteceu hoje.
         Saio da escola, no fim do dia, e passo pelo supermercado. Entro e, à minha direita, verifico que as mesas estão ocupadas pelas pessoas de sempre: um velho que percorre habitualmente os cafés desta cidade, para, com calma, olhar as mulheres à sua volta. É costume estar com um copo de vinho do Porto. Hoje, porque o local não fornece esse tipo de bebidas, tinha uma cerveja e um saco de amendoins. Comia com lentidão e o seu olhar perscrutava os vultos femininos, que devorava com ousadia; noutras mesas, as mesmas mulheres de sempre, que quase habitam o espaço, de moeda na mão, raspando cartões que lhes consomem tudo menos a esperança. A nós, consomem o dinheiro que, generosamente, entregamos ao estado para a ação social. Não se trata de indigentes ou incapazes. Nada disso. São, quase exclusivamente, pessoas que se relacionam mal com o trabalho. A sua atividade resume-se a três coisas: receber os subsídios, ir buscar as refeições já preparadas à instituição que lhas dá e jogar, enquanto saboreiam uma bebida ou um café; do outro lado do balcão, duas jovens despenteadas e já meio desfraldadas, dividem-se entre múltiplas tarefas e máquinas registadoras, a troco de um mísero vencimento no fim do mês. Por enquanto, resistem.
       Continuo o meu caminho, compro a única coisa de que precisava e saio. À minha frente, uma jovem, com os seus vinte e poucos anos, arrastava-se para a saída do estabelecimento, com uma garrafa de um sumo qualquer na mão e falava sozinha. Olhei-a, julgando que fosse apenas um comentário ocasional. Não era. Era outro olhar vazio, numa conversa imaginária sabe-se lá com quem. 
        Entro no carro e tento apagar as imagens anteriores. Em vão. Quando paro e me preparo para sair, olho, casualmente, para o jardim em frente. O cenário de sempre: uma mulher solitária, que costuma consumir muito do seu tempo nos cafés da avenida, entre bolos e cafés, num monólogo constante, está num dos bancos do jardim. Ri-se e fala sozinha, como sempre. A certa altura, levanta-se. Poder-se-ia imaginar que chegara a hora de voltar para casa. Não. Muda apenas de banco. A poucos metros dali, grupos de homens (uns reformados, outros desempregados). Uns dormitam, outros discutem o mesmo de sempre. 
        Na avenida, do outro lado do jardim, vejo um homem que, todos os dias, a várias horas do dia, arrasta o seu “tesouro” num carrinho de compras e debaixo do braço, pois não o confia a ninguém. Saberá ele, atrás daquele olhar vazio e meio lunático, que o seu tesouro vale zero? Ou será apenas o desespero de quem já teve um pequeno tesouro nas mãos e o esbanjou? Só ele saberá ou talvez não.
        Tenho a certeza que, se o meu olhar alcançasse mais longe, veria, à mesa de um qualquer café, o mesmo solitário que dormita dias inteiros para “fugir” do local onde vive; os casais desempregados que passeiam os filhos dela, os filhos dele e os filhos de ambos; as fumadoras sem dinheiro; a gente exausta pelo trabalho sazonal, longínquo e duro, que afoga o cansaço e o seu precioso vencimento em vapores de álcool e tantas, mas tantas, outras figurinhas típicas do mundo de hoje.
       Crise? Claro que sim. Apenas económica? Nem pensar. É, sobretudo, uma crise de valores. É um desnorte coletivo.
       Volto as costas e entro na minha consciência. Decerto não serei exceção a esta imagem decrépita que vejo da sociedade. Qual será a minha neurose? Por agora, decido fechar-me no meu quarto e fingir que está tudo bem. 
H. G. - 27.09.2016